9 de maio de 2008

Como você me quer






Olá pessoal, segue a reprodução dos escritos do Marcelo Coelho em seu blog.
Beijos e abraços

Como Você Me Quer

Sempre tive um bocado de prevenção contra Pirandello. A surpresa de uma peça como "Seis Personagens em Busca de um Autor" parece que se esgota, a meu ver, numa época saturada de metalinguagem, de filmes que falam de filmes, de romances que são como cobras engolindo o próprio rabo, e até nos quadrinhos de "Mônica" surge, de vez em quando, o desenhista em crise de inspiração ou interagindo com os personagens que criou.

A idéia de que tudo é representação, e que atrás de uma máscara não se encontra nada além de outra máscara, pode ter sido importante para discutir a chamada "crise intelectual do século 20", mas afinal pode ser também um mero truque sofístico.

Tive uma ótima surpresa ontem, assistindo a "Como Você Me Quer", uma peça de Pirandello bem mais profunda do que esse jogo a que me referi. Nesse drama, está em funcionamento, mais uma vez, toda aquela história de que cada indivíduo é apenas uma personagem criada pelos outros, ou por si mesma, e de que não há uma "verdade interior", nem mesmo uma "verdade factual" capaz de dizer quem e o quê, de fato, cada um é.

Acontece que esse labirinto de identidades está, no caso dessa peça, a serviço de uma situação dramática real, em que uma personagem de carne e osso de fato tem de "enganar" as pessoas à sua volta –sem que o espectador saiba em momento nenhum se se trata de um embuste mesmo ou se a personagem apenas finge estar enganando os outros para descobrir quais suas verdadeiras intenções.

A atenção intelectual do espectador se mantém desperta o tempo todo, sem que o texto perca em clareza na montagem –que teve a excelente idéia de fazer com que vários atores assumissem, alternativamente, o papel dessa personagem. Acentua-se, assim, a presença das múltiplas "personalidades" que a protagonista assume quando engana ou quando diz a verdade aos outros; e, ao mesmo tempo, evita-se que o peso de um papel dificílimo recaia apenas sobre uma das atrizes da companhia.

Todos –atores e atrizes— estão numa sinuca, pois têm de representar

bem e, ao mesmo tempo, têm de representar mal. Uma pessoa tentando fingir que é outra pessoa nunca é perfeita em seu fingimento; acontecem exageros, momentos inconvincentes, etc. Como um ator pode fazer isso sem dar a impressão de que representa mal também?

Ziza Brisola (grávida), empenha-se com sucesso e no fio da navalha do dramalhão nessa tarefa. Fernanda Moura, que é quem começa assumindo o papel da protagonista na peça, é uma sofisticada presença no palco, ao estilo das divas italianas de outros tempos, mas se ressente do fato de que a complexidade da situação ainda não foi exposta plenamente para o espectador naqueles momentos iniciais; um pouco mais de estilo "cinema mudo", e menos drama, talvez a beneficiasse.

A encenação de Mauricio Paroni de Castro não cai no erro comum de acrescentar novos elementos e maluquices a um texto que já é

suficientemente complexo em si mesmo. Ou melhor, acrescenta uma de que não gosto: um longo balé de travestis, quando os atores masculinos passam a representar, também, o papel da protagonista.

Entretanto, a idéia de deixar uma cadeira de rodas vazia, num momento crucial da peça, que não posso descrever em detalhes, é um bom "acréscimo", acho. Tira, na verdade, uma coisa que imagino existir numa encenação tradicional, e ao mesmo tempo a idéia geral do espetáculo se fortalece.

"Como Você Quer" está sendo encenada toda quarta-feira, às 21h, noTeatro João Caetano, com direção de Maurício Paroni de Castro –que, à frente da Companhia Manufactura Suspeita e da Companhia Linhas Aéreas, teve o gesto amigo de encenar as histórias de Voltaire de Souza nos Satyros, ano passado. Às quintas, no mesmo horário e teatro, eles encenam outra peça de Pirandello, "Cada um a seu Modo".

Escrito por Marcelo Coelho

-----------------------------------------------------------------------------------------

segue outra crítica de Mauro Fernando, da APCA

COMO VOCÊ ME QUER e CADA UM A SEU MODO


Fiéis a Pirandello



A famosa Fulana aparece nua na capa de uma revista masculina; no mês seguinte surge com a filha de 3 anos num paraíso exclusivo de uma revista de celebridades. Qual das duas é a verdadeira: a fêmea que irriga o imaginário masculino ou a mulher que povoa o universo feminino? Ou ambas? Ou nenhuma? Essa dicotomia ser/parecer, realidade/ilusão, rosto/máscara enlaça a sociedade do nosso tempo à obra do siciliano Luigi Pirandello (1867-1936).

Ao desbastar a objetividade das certezas e grifar a subjetividade das possibilidades em meio ao requinte metalingüístico de pelas como Seis Personagens à Procura de um Autor, Pirandello demonstrou sua vocação para questionar as coisas do mundo. Sob a direção de Maurício Paroni de Castro, é o que pretendem demonstrar a Cia. Linhas Aéreas e o Atelier de Manufactura Suspeita com o projeto Cada um a seu Modo, que reúne no Teatro João Caetano, em São Paulo, dois textos do autor italiano (Como Você me Quer e Cada um a seu Modo).

O procedimento pirandelliano funda-se em algumas premissas básicas, assumidas até as últimas conseqüências. Em primeiro lugar, eu posso crer-me alguém, mas sou tantos quantas são as pessoas que me contemplam, já que as imagens não se igualam. (...) Por outro lado, se eu me creio hoje um, essa pessoa não é a mesma de ontem e não serei igual ao de amanhã. O fluxo da vida pode acumular imagens parecidas, numa mesma linha direcional, mas ninguém estará fixado numa realidade única e imutável, explica o crítico Sábato Magaldi no livro O Cenário no Avesso. É lícito inferir: a roda da História gira.

Com uma ironia sofisticada e rascante, Pirandello permite perceber em peças que não vêm com data de validade uma visão um tanto pessimista atada à sociedade que se enovelou nos próprios equívocos, à hipocrisia condicionada por relações sociais pautadas pela falsidade. Nutridos pelos próprios sonhos, todos podem viver no mundo enganoso das aparências. Mas esse mundo ilusório cobra seu preço: favorece a incapacidade crítica ao esgarçar a identidade do indivíduo.

O centro do enredo de Como Você me Quer está na mulher que leva uma vida dupla: a frívola Elma ou Lúcia, a esposa desaparecida de Bruno? Motivos financeiros em relação à família de Bruno movem sua busca pela desaparecida. Todos os atores (Alexandre Magno, Fabio Marcoff, Fernanda Moura, Vanderlei Bernardino e Ziza Brisola) interpretam a enigmática mulher em momentos diferentes da montagem, instigando no público a reflexão sobre os dilemas da identidade e das aparências.

Conta-se que Pirandello escreveu Cada Um a Seu Modo inspirado no suicídio de um escultor que surpreendeu a noiva, uma atriz, nos braços de um barão. O jogo metateatral se faz presente: uma companhia encena a peça baseada nos acontecimentos reais quando a atriz e o barão chegam para contestar os personagens neles inspirados. Conforme a ambientação cênica elaborada por Paroni de Castro, Magno, Marcoff, Fernanda, Bernardino, Ziza e Roberto Alencar (que atua apenas nesta montagem), o plano da realidade é representado no fundo do tablado e o da ficção, na frente. O palco, assim, é visto pelo avesso, acentuando a discussão, embutida no texto pirandelliano, sobre uma ética ambígua.

Os recursos antiilusionistas utilizados nos dois espetáculos enfatizam as questões caras ao autor e isolam os contornos melodramáticos das tramas, leitura possível em montagens convencionais; nota-se estar diante de produções que se diferenciam do mercado teatral. O esforço do homogêneo elenco, que retrabalhou os textos originais, anda em sintonia com as idéias e brincadeiras cênicas de Pirandello.

O programa de Cada um a seu Modo esclarece o subtexto sobre o qual se debruçam a Cia. Linhas Aéreas e o Atelier de Manufactura Suspeita: A mensagem, amarga, do abaixamento da arte ao nível da exposição indecente de intimidades de famosos ou boçais e o conseqüente arrivismo social e decadência do gosto. O trabalho das duas companhias, na trincheira dos que ambicionam tornar visíveis as transformações sociais, não é pequeno.


Escrito por Mauro Fernando




--