30 de agosto de 2011

Principais técnicas criadas e empregadas pela companhia Manufactura Suspeita.






1. Círculo de ação: o ator como suporte da dramaturgia

Estabelecido um círculo que delimita o seu espaço de atuação, o ator coloca-se ao centro. Prepara-se em silêncio. A seguir, responde obrigatoriamente a um questionário, por parte de um público ou de seus colegas. Este é

a. dirigido à pessoa do ator.
b. dirigido à idéia que ele tem da personagem.
c. dirigido à idéia com que o autor criou a personagem.

Evidenciam-se imediatamente pudores pessoais; estabelece-se um conflito entre a personalidade do ator e a idéia de personagem feitas por ele e pelo autor, no momento em que a improvisação, guiada passo a passo pelo diretor, requer dele – ou da “personagem” – uma ação.
No decorrer dos ensaios, os pudores volatizam-se ou são reprimidos. Mas o que interessa, os conflitos e contradições, são diariamente esmiuçados através de discussões entre os atores, o diretor e o dramaturgista. Através desse exaustivo processo de análise, os limites e as distâncias entre ator e personagem são estabelecidos de forma precisa. Essa precisão absoluta permite a imensa liberdade que é a criação cênica feita no limite entre a representação e a não-representação. Isso distingue os espetáculos do Manufactura Suspeita. A finalização das cenas será domínio exclusivo do dramaturgista, visto que escreveu a trama. Quem cria o suporte pessoal da obra são os atores. Quem estabelece os limites entre a obra e a vida real é o diretor. Mas a forma e o resultado final da obra são ditados pelo respeito absoluto ao resultado do processo conjunto desencadeado.

Ao transformarmos o ator em suporte de uma dramaturgia, conferimos-lhe uma responsabilidade que o transforma em criador, em autor pessoal de um texto feito de palavras, de gestos, de sons, de ritmo. O seu substrato pessoal funde-se com o substrato do seu trabalho artístico que, ao transbordar do âmbito pessoal, possibilita-lhe uma amplitude criativa teatral praticamente infinita.

O dramaturgista e o diretor, por sua vez, dialogam com o suporte trazido pelo ator. Acabam por necessitar da assimilação desses novos elementos trazidos pelo ator para, juntos, elaborarem uma nova escrita do espetáculo.

2. A deriva : criação de uma cartografia emocional e teatral das cidades

Estabelecem-se regras precisas de percursos feitos a pé em lugares diferentes dos habituais, em uma trajetória que não se cristaliza. Estrutura e sintaxe cênica do texto decorado e dito durante a experiência do percurso são mantidas. Os atores são predispostos a responder a verdadeiros questionários, feitos por parte dos desconhecidos, com quem são forçados a topar e a pedir informações sobre trajetos.

Esta prática é um dos pontos fundamentais na fatura da trama, onde os atores são o suporte da dramaturgia, e não o contrário, como se costuma fazer tradicionalmente. Os ganhos de tal inversão são de vários níveis: conceitual, criativo, interpretativo.

O diretor faz a orquestração e a comunicação entre essas esferas práticas e conceituais, definindo parâmetros precisos para que se possa estar aberto às descobertas. Aqueles só são fornecidos, porém, se forem deliberadamente acordadas as condições para que elas aconteçam em torno do texto original. A epifania pode até vir por acaso; mas quando há intenção de achá-la, podemos reconhecê-la com facilidade, e ela não mais se perde.

Em nossa companhia, o exercício da deriva é muito importante porque combate a atitude geral do ator que atua para ele mesmo que está atuando. Além disso, o exercício em si é passível de ser visto como uma obra que gera reflexão e interesse por parte de quem vê, e interfere de modo decisivo na comunicação e na presença do ator que está em cena.

A origem de tudo isso nasceu de uma pesquisa sobre "Rua de mão única", de Walter Benjamin.


Em “Rua de mão única”, Benjamin praticamente enuncia que somos obrigados a nos localizarmos a todo instante, mesmo se desejarmos nos perder. Nem um porre nos tira da linha. Somos condicionados a seguir placas de trânsito, indicações de direção, semáforos. Por extensão, seguimos modismos, tendências estéticas, manias coletivas, turismo de massa. Viajamos milhares de quilômetros para posar diante de um cartão postal.
A coisa vem de longe. Quem quer que tenha visitado qualquer ruína de cidade romana com atenção, terá notado uma rua de norte a sul chamada “cardum“ e outra de leste a oeste chamada “decumanum”, com paralelas do mesmo nome. Ao conquistar e manter um império de dimensões continentais, os romanos faziam de tudo para localizar-se sempre. Seus atuais herdeiros, os norte-americanos, também têm essa mania. Se você visitou New York, mesmo desatento, notou que a cartografia urbanística é a mesma: um tabuleiro de xadrez.
Infelizmente perde-se muito com isso. A sensação de desorientar-se em Mahakesh, onde pode-se tranqüilamente fantasiar raptos, escravidão branca e coisas afins, ficou fora de moda. É bem mais comum um executivo de folga (de um dia) na Itália conhecer alguma lojinha globalizada em Veneza do que se perder naquela maravilha, e descobrir que o melhor dali não são os museus, canais ou gôndolas: são os bares atrás de portas de residências comuns. Oferecem uma infinidade de petiscos marinhos (“cicchetti”) inimitáveis, acompanhados de honestos vinhos brancos (“ombretta de vin”) e fofocas terríveis sobre a cidade. Enfim, perde-se muita cultura.
Vamos adiante. O ensaio de Benjamin sugeriu-me algo ainda maior: a existência, em qualquer cidade ( e nas pessoas de tais cidades), de uma cartografia emocional a ser descoberta, desenhada, atuada. É muito mais rico e emocionante lembrar-se da primeira tentativa parisiense de paquera (com óbvias conseqüências desastrosas) em algum bar medíocre do que reconstruir uma visita com excelente guia turístico à Torre Eiffel.

3. Leitura de mesa à italiana, segundo a técnica de Massimo Castri.

Mauricio Paroni de Castro
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