22 de agosto de 2010

Opiniao de Marcelo Coelho sobre Com Quem Fica o Coração, em cartaz no Ruth Escobar todas as quintas às 21:30

"Com Quem Fica o Coração"



Assisto à montagem de “Com Quem Fica o Coração”, espetáculo de grand-guignol dirigido por Maurício Paroni de Castro. Declaro meu interesse novamente: trata-se de grande amigo meu, que pôs em cena alguns contos de Voltaire de Souza no espetáculo “Aqui Ninguém é Inocente”, da sua companhia, a Manufactura Suspeita.
Entra-se no teatro Ruth Escobar, e os atores já estão em cena, no que parece ser uma sala de cirurgia clandestina. O médico (Carlos Meceni) realiza uma autópsia, atrás de uma bancada; o cadáver não se vê. A morta, sim: Janine Corrêa está de pé, vestida com a bata branca dos pacientes, e comenta um pouco sua própria condição. O ajudante do médico (Josué Torres) aparecerá mais tarde. Um rádio toca música e pregação evangélica.
Em primeiro lugar, o que chama atenção é a absoluta naturalidade na voz, na dicção de Carlos Meceni. É um operador entediado, falando barbaridades enquanto opera outras no corpo em morte cerebral. Seu cientificismo cínico irá contrastar, assim como seu vocabulário e sotaque, com o credo religioso, a linguagem e a mentalidade para lá de classe C do seu ajudante.
Aos poucos se estabelece, com precisão extrema de detalhes, a diferença social e psicológica entre os dois personagens. Escrever isso é escrever pouco: o ajudante evangélico simplesmente não pensa segundo as mesmas regras do médico; as objeções e comentários que este lhe faz são ignoradas, num fluxo de ideias, convicções e narrativas que funciona sozinho. O ajudante é detalhista em suas memórias do passado: cita marcas e modelos de caminhão, raças de porco e de zebu, atropela-se citando personagens e mais personagens de algum episódio que viveu, sem se dar conta das ironias e das críticas do médico. Este, por sua vez, despreza o interlocutor, aborrece-se, reclama dos próprios problemas, atende a um sinistro celular. Sua familiaridade com a morte e com o mal é levada como um papo de boteco, enquanto a credulidade do antagonista tem o aspecto delirante que não é apenas o de uma religião fundamentalista, mas o de uma mentalidade quase que mutilada pela experiência da pobreza e da deseducação.
Os detalhes chocantes da trama não podem ser contados, mas deve-se registrar a abundância de sangue espirrado e humor negro ao longo da peça. O entrecho, que poderia ser mais esclarecido num ponto ou outro –esta é uma das críticas que sempre endereço a Maurício Paroni—interessa menos, contudo, do que o conflito em cena. De um lado, o racionalismo pragmático do médico, com o qual nos identificamos (até notar o abismo de perversão a que conduz). De outro, a irracionalidade pura do evangélico, que parece mais inocente, e com a qual é impossível identificação imediata, e menos ainda depois de se notar o extremo de brutalidade de que é capaz. Racionalismo e irracionalidade se espelham de modo aterrador no texto –tornando a presença da morta, esta é outra crítica, um pouco sem função durante boa parte do espetáculo.
“Com Quem Fica o Coração” está em cartaz no Ruth Escobar, somente às quintas-feiras, às 21h30.
Escrito por Marcelo Coelho às 01h01

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