18 de março de 2009

Artigo no Cronópios









O desenho angustioso do limite


Por Maurício Paroni de Castro
Publicado hoje, no site Cronopios.com


http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=3877


Os limites da representação e da realidade levam a outra tensão, quando se trabalha com a direção de atores: a tensão entre aqueles que se consideram profissionais e aqueles que os profissionais consideram amadores. Dentre estes, há os que consideram os “profissionais” um modelo estético a ser seguido e aqueles que simplesmente não consideram o problema. Estes são os não-atores.

Acredito que a arte esteja mais próxima dos primeiros e dos terceiros. Trabalhei em alto nível com as duas categorias e me dei muito mal com os “amadores”. Ou com aqueles “profissionais” que procuram falar com a voz empostada pelo que acham que são intenções estudadas na leitura de mesa. Gritam em alto e bom som mesmo o maior segredo de estado. O teatro, pugnam tais luminares do palco, confere-lhes poderes de viver situações extremas com um conforto que enrubesceria James Bond. Exibem sem economia a garganta-megafone-policial-de-passeata, alheios a qualquer característica psicológica ou social daquilo que pensam representar. Não prezam o signo mas o estilo. Tenho calafrios quando desconfio descrever muito mais profissionais do que gostaria. Alguns, treinados com sinal invertido num improvável Grotowski de oitava mão, têm animais os mais diversos como modelo estético.

O que pode definir os limites e os possíveis contornos desse tipo de tensão teatral pode ser a proximidade ou à distância entre o ator e o ser humano. Shakespeare e a grande dramaturgia que se seguiu se pautaram sempre por isso: o Humanismo do Renascimento é a linha-mestra da nossa arte.

O dilema que gostaria de definir aqui é particular: o corpo e a mente do ator são corpo de um ser humano, que naquele momento de trabalho é ator. O pianista tem o piano como instrumento. O ator tem somente a si mesmo, à sua mente, ao seu corpo, à sua biografia, às suas relações, à sua existência presente. Não se trata da mimese da realidade sugerida por Aristóteles. Trata-se daquilo que chamo de credibilidade da representação, da linha de prumo que deve guiar toda e qualquer indicação de direção durante qualquer trabalho. Nesse sentido, endosso o que vi de Strehler: a luta por um teatro humano. Não foi por acaso ou por ideologia que ele viveu e criou o seu teatro como um serviço público.

Eu sei, não deveria qualificar esteticamente um espetáculo de bom ou ruim. Faço, já fiz e gostei de tudo o que foi teatro(*). Julgamento estético não é e nunca foi função do diretor. Seria função dos críticos - se deles o exigissem os seus editores.

Pragmaticamente, qualifico os espetáculos, na função técnica de diretor, em universo crível ou falência da representação do mesmo. Creio procurar uma verdade existencial no que exerço; decorre disso que tento livrar o ator de suas auto-imposições e naturais fetichismos estéticos para fazê-lo partir do ser humano que é na direção de um papel crível, sugerido pelo texto ou pelo procedimento criativo empregado. O mesmo se dá com o “não ator”: tento livrá-lo de uma auto estetização. Os dois procedimentos se assemelham muito mais do que se possa supor. O resultado estético é o mesmo patamar de representação do mundo em que vivem atores profissionais e não atores.

No engodo, na estilização, na ideologia vazia – vale dizer, na mediocridade – trafega um bom dinheiro de subvenção ou de renuncia fiscal, de poder, de carreira. Nesse pântano, profissionais de verdade são bem poucos, se entendidos não como gente obrigada a dar cursos fajutos, fazer bicos, publicidade, mas como gente que ganha a vida com o teatro em que acredita. Nem entendidos como profissionais os que têm o hobby do palco. Há massagistas, advogados, médicos, comerciantes, ninfo-homo-erotomanes que fazem “teatro profissional” nas horas vagas e discriminam artistas sutis na palavra e no gesto (para citar Hamlet). Muitos têm boa qualidade, mas não é disso que se trata neste artigo.

A maioria de nós é condenada pela nossa sociedade política a morrer de fome, viver de permutas escassas, heranças, promiscuidades variadas, sortidas colorações ideológicas. Essa existência dramática, que nos enriqueceria humanamente, que daria muito mais potência à nossa arte, fica escondida sob estilo e mediocridade. Fortuitamente, alguma coisa vem à tona.

Isso é igual para todos. Para evitar esse defeito crônico, provoco sistemáticas indagações existenciais durante o período de criação. De vez em quando, quem ensaia comigo vive sérias crises. Sempre me perguntei o porquê disso: acho que aí está uma boa fonte de angústias esteticamente construtivas.




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(*) De teatro épico-político de “Opla, Siam Vivi” (Opla estamos vivos,de Renato Gabrielli, a partir de Ernst Toller, prêmio de melhor direção de 1993 em Milão) a teatro minimalista de “Gigantes da Montanha, antes” (a partir de uma cena do texto homônimo de Pirandello).








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